Michelangelo dizia que a sua escultura apenas libertava do mármore bruto o que este aprisionava – o anjo, ou o cavalo, ou a ninfa – retirando do bloco de pedra tudo o que não era necessário para revelar a sua forma final, a qual ele já antevia. Marco Polo, no magnífico livro As Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino, narra suas aventuras para o grande imperador mongol Kublai Khan. Em uma das passagens, Marco Polo descreve uma ponte e pergunta ao imperador qual das pedras sustenta a ponte e, diante do silêncio do Imperador, relata que a ponte não é sustentada por uma ou outra pedra, mas sim pelo arco que estas formam. Louis Kahn, um dos mais importantes arquitetos do século XX, defendia que “até mesmo um tijolo quer ser alguma coisa” e referenciava sua arquitetura no respeito à natureza dos materiais, nas formas elementares, nos amplos espaços e na poesia da simplicidade.
O barro que vira tijolo, que se transforma em uma parede, que conforma um espaço, que assume sua função de dar abrigo, finalmente alcança seu “desejo de ser alguma coisa”. Este é o trabalho e o prazer do arquiteto. Transformar um tijolo em espaço ou pedras em arcos, em pontes, em cidades. Do material bruto libertar as formas belas e necessárias para o desenvolvimento das atividades humanas. Se na escultura de Michelangelo as formas aprisionadas são libertadas da matéria bruta, em arquitetura e urbanismo a forma surge a partir das pessoas e do espetáculo da vida, a partir do cotidiano e de um vazio que, em potencial, é lugar habitado. A ação parece inversa, mas a satisfação de gerar lugar para que a vida aconteça é tão libertadora como.
A arquitetura não é simples construção. Não se trata da maneira mais barata, mais rápida e mais ordinária de resolver um problema qualquer. A arquitetura se apoia na ciência para saber colocar as pedras nos seus devidos lugares – para que o arco não caia, envolve a poesia na interpretação das necessidades das pessoas e cria arte ao conceber o espaço e proporcionar surpresa que nem em sonho parecia possível. A arquitetura vista apenas como construção é um desperdício social, econômico e cultural. A sociedade que não aproveita bem o saber e o fazer do arquiteto e urbanista é uma sociedade pobre, feia, doente. Sem arquitetura e urbanismo, a cidade não funciona, cresce torta e desleixada, os seus edifícios parecem todos iguais de tristes e encardidos, os seus lugares – que deveriam ser públicos – são transformados em sobras abandonadas ou privatizadas, sequestrados pela insegurança ou pela ganância.
No dia 15 de dezembro, desde que foi criado o Conselho de Arquitetura e Urbanismo, celebramos o Dia do Arquiteto e Urbanista, nesta data coincidente com o aniversário do Oscar Niemeyer, nosso maior arquiteto. Neste período recente, a classe dos arquitetos e urbanistas vem trabalhando com energia e fazendo muito para avançar. Iniciamos a implantação da arquitetura social através da Assistência Técnica, levando nosso trabalho às famílias sem recursos. Lutamos pelos projetos completos e contra as licitações de obras públicas sem projeto, porta escancarada para a corrupção. Estimulamos e organizamos Concursos Públicos de projetos que escolhem, de forma democrática, a melhor solução pelo critério da qualidade, e não do menor preço. Colaboramos para o aperfeiçoamento das leis e normas que regem desde o planejamento das cidades até as exigências para a construção de qualidade. Defendemos o Patrimônio Cultural como elemento de identidade e memória coletiva de nossas cidades. Brigamos bastante para que a cidade seja de todos os cidadãos e não para uso e lucro de uns poucos. Atuamos fortemente na área da cultura para fazer com que a sociedade e as instituições, entendam que Arquitetura também é Cultura e disfrutem dos benefícios desta revelação.
Arquitetura é Cultura quando avança, vai além da mera construção, resolve o problema com uma solução completa, que funciona, que satisfaz e que é bela. O arquiteto e urbanista é o profissional que planeja, que entende e antecipa os problemas, que compara possibilidades, que pensa antes de agir e que, finalmente, projeta a melhor solução. Projeto bem feito significa uma obra mais econômica e mais segura, sem desperdícios e durável, mais criativa por que investiga e incorpora novas ideias e mais bonita para poder libertar as pessoas da matéria bruta à qual estão aprisionadas.
Tiago Holzmann da Silva é Presidente do IAB RS – Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento do Rio Grande do Sul.