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Discurso à primeira turma de arquitetos da Faculdade de Arquitetura da URGS

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Em comemoração ao centenário do arquiteto e urbanista Demetrio Ribeiro, o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB RS) irá publicar uma série de artigos do ex-presidente do IAB RS e do IAB nacional. O texto de abertura será o discurso proferido como paraninfo à primeira turma de arquitetos da Faculdade de Arquitetura da URGS, em 1952, que foi publicado pela Editora UFRGS no livro Faculdade de Arquitetura 1952/2002, com organização de João Farias Rovatti e Fabiano Mesquita Padão. Confira:

Digníssimas autoridades,
Minhas senhoras e meus senhores,
Meus jovens colegas,

Convidado a acompanhar em seus últimos passos da vida universitária esta primeira turma da Faculdade de Arquitetura, agradecido pela honrosa escolha de que fui objeto, volto o meu pensamento àqueles dias ainda tão próximos em que se iniciou entre nós o ensino da Arquitetura. Há oito anos passados, Dr. Tasso Corrêa, teve a iniciativa de organizar no Rio Grande do Sul, um Curso de Arquitetura nos moldes do existente na Universidade do Brasil. Não faltaram, então, os que duvidaram do êxito ou mesmo da oportunidade desse propósito. Irrealizável ou, pelo menos, prematuro pareceu a muitos o empreendimento. Os fatos posteriores confirmaram as esperanças dos que confiavam no desenvolvimento da nossa profissão e no interesse que por ela manifestaria a juventude estudiosa.

A nossa Faculdade, que hoje gradua a sua primeira turma, já tem a sua história. É uma história rica em ensinamentos. O decreto que criou a Faculdade, longe de ser uma medida improvisada, antecipada aos fatos, foi o resultado de um longo esforço, fruto de aspiração dos estudantes.

Aspiração e ação dos estudantes que queriam a Faculdade. Porque é bom não esquecer que a Faculdade não se fez sozinha. Houve oposição a que ela existisse, oposição ativa e inércia. Existiram, enfim, obstáculos que só o entusiasmo removeu. E esse entusiasmo venceu porque agiu de maneira organizada. Os mais ativos dos estudantes de arquitetura, que se batiam pela criação da Faculdade, formaram a comissão “Por uma Faculdade de Arquitetura”.

Essa comissão desenvolveu um papel inestimável no processo que levou à criação da Faculdade. Sabendo claramente o que queriam e conhecendo a fundo a questão, distribuindo entre si as tarefas e planificando o trabalho, os componentes da comissão, com o apoio entusiasta de todos os seus colegas, conseguiram que em pouco tempo os círculos universitários do país conhecessem o problema e apoiassem a criação da Faculdade de Arquitetura do Rio Grande do Sul. Tendo, assim, levado até a opinião pública, uma reivindicação estudantil justa, esses jovens foram recompensados pela vitória, pela criação desta nova entidade, que muito há de contribuir ao progresso cultural do Estado.

Na consolidação da Faculdade, o papel do estudantado continua a ser preponderante. Ao trabalho organizado dos estudantes devem-se os resultados mais positivos deste primeiro ato de trabalho da Faculdade. Em cooperação dom uma comissão de professores, os estudantes deram uma contribuição importantíssima na elaboração do projeto de um plano de estudos que, embora infelizmente rejeitado pela maioria da Congregação, é um instrumento utilíssimo para a orientação das atividades didáticas da Faculdade.

Por ocasião do primeiro Congresso Nacional de estudantes de Arquitetura, realizado na Bahia, de 4 a 12 de outubro, a delegação estudantil gaúcha, que tive a honra de acompanhar e da qual fazia parte o nosso querido companheiro Zanin, desempenhou papel destacadíssimo. E essa atuação brilhante dos alunos da Faculdade, que muito honrou a nossa Universidade nesse conclave nacional, foi o resultado principalmente, da preparação séria, organizada e democrática que o Centro Acadêmico realizou.

O mais belo resultado obtido neste primeiro ano de atividades na Faculdade foi, sem dúvida, o da unificação completa de nossa Escola. Oriunda da fusão de dois cursos, com orientações bastante diferentes, era, na verdade, o principal problema da novel Faculdade realizar a sua unidade, fazendo desaparecer os vestígios das diferenças anteriores que poderiam mesmo, em certos casos, ter o caráter de mal-entendidos.

É digno de ressaltar, pois, que nesses meses de convívio, os estudantes souberam das à nossa Escola um clima de completa unidade, fazendo com que todo o nosso trabalho se desenvolvesse dentro da maior harmonia.

A intensa atividade da organização acadêmica, dando ensejo a que se conhecessem melhor os alunos provindos de um e de outro curso, muito contribuiu a essa unificação da Faculdade.

E os fatos confirmaram que, contraditoriamente ao que pensam alguns, não existe contradição entre a atividade gremial do estudante e o nível de sua vida escolar. É que uma e outra coisa, a atividade social do aluno e a eficiência de seus estudos, refletem o seu amor á profissão e a consciência que tem de sua responsabilidade perante a coletividade.

Creio que podemos confiar no futuro de nossa Escola e que ela tem o direito de ver resolvidos os seus problemas. Porque existem problemas, alguns dos quais prementes. O corpo docente ressente-se da falta de cargos de assistentes em número suficiente. Algumas das cadeiras desprovidas de assistentes têm recebido a ajuda desinteressada de assistentes voluntários.

Esses jovens profissionais, que, com sacrifício pessoal, muito têm feito pelo ensino, merecem a nossa gratidão. O problema dos assistentes, nem por isso, deixa de ser urgente para uma escola em que a natureza específica do ensino reclama o maior contato individual entre alunos e professores.

O fato de não ter sido ainda criado o cargo de Diretor da Faculdade, que já funciona há um ano, constitui outra anomalia, assim como a falta de cargos administrativos para a Faculdade.

Nesse ano, tivemos que trabalhar com grandes deficiências de instalações e de equipamentos. A nossa biblioteca ainda não existe, pois que não podem merecer tal nome os poucos volumes que dispomos.

É enorme o prejuízo que essa falta causa ao ensino.

Meus jovens colegas:

Faço aqui referências a estes problemas da Faculdade porque estou certo de que vocês continuarão vinculados à escola em que se formaram. Esse vínculo existe sempre para o bom universitário. Para vocês, arquitetos, existirão na vida profissional muitas ocasiões em que lembrarão a vida de estudante.

A mesma luta para fazer conhecer e compreender a nossa profissão, esta mesma luta que acompanhou a vida de estudante, continua depois de formado.

Apesar do progresso observado no esclarecimento do público, em matéria de arquitetura, muito tem de ser feito ainda para que se reconheça à nossa profissão o seu lugar no conjunto social.

Ainda recentemente, pudemos constatar, não sem surpresa, que no plano de reestruturação do funcionalismo do Estado, não existem cargos de arquitetos. Isso equivale dizer que num dos Estados mais adiantados do país, não é reconhecida a nossa profissão nos quadros do funcionalismo técnico.

O que importa é insistir no trabalho de defesa da profissão, sem deixar amesquinhar essa luta ao nível de antagonismos ou rivalidades imaginárias com outras profissões. A competição entre arquitetos e engenheiros não tem normalmente razão de existir. Os campos de ação das duas profissões são inteiramente diferentes. O arquiteto estuda cinco anos para projetar e realizar o ambiente construído para a vida humana. Devendo satisfazer as necessidades humanas de ordem material e espiritual, a obra do arquiteto tem, necessariamente, uma qualificação estética por força da percepção estética própria de todo o ser humano. Daí que o trabalho do arquiteto sempre seja em alguma medida um trabalho de ordem artística.

O preparo do arquiteto é, por essa razão, bem diferente do preparo do engenheiro. Acontece, porém, que o atraso relativo de nossa economia mantém o campo de ação do engenheiro em limites estreitos, dando-lhe poucas oportunidades de aplicar seus conhecimentos dos diversos setores da engenharia. Assume, então, desproporcionada importância para o engenheiro o ramo da construção civil, um dos poucos que se lhe oferece.

A solução do problema nunca estaria em tentar competir com o arquiteto no trabalho em que este é profissional com preparo específico, mas ao contrário, ver no arquiteto um aliado no esforço comum para lutar por mais amplas perspectivas para os nossos profissionais.

Os obstáculos que se antepõem ao desenvolvimento da arquitetura têm razões mais profundas. As incompreensões, a falta de conhecimento, o ceticismo com que nos deparamos, não passam de conseqüências de fatores de ordem econômica e social. O arquiteto verdadeiramente culto deve ter consciência da vida nacional a fim de poder situar-se corretamente no processo de desenvolvimento cultural do país.

Quando explicamos o que é arquitetura a alguém que não o sabe, temos de dizer-lhe que o bem-estar material e espiritual dos homens é tão importante que existe uma profissão dedicada exclusivamente a criar o ambiente em que ele vive.

O conteúdo profundamente humanista e progressista dessa simples noção de arquitetura explica muita coisa.
Explica que a arquitetura só possa existir e desenvolver-se na medida em que a sociedade atende às necessidades materiais e espirituais de seus componentes.

Compreende-se que quando grandes camadas da população vivem em condições de paupérrimos, com uma capacidade aquisitiva baixíssima, a arquitetura, o sentido mesmo dessa palavra arquitetura, seja inteiramente estranho à experiência dessas massas.

A popularização da arquitetura, a sua divulgação no Brasil, pressupõe uma elevação considerável de padrão de vida do povo.

Não somente a popularização da arquitetura depende disso, como a própria existência de algo que se possa chamar de arquitetura brasileira. Uma arquitetura realmente nossa só poderá resultar da soma de esforços dos arquitetos brasileiros atendendo ás necessidades do nosso povo, usando os recursos materiais e culturais nossos.

As necessidades do nosso povo em matéria de arquitetura são imensas. Seria inútil insistir sobre esse ponto. Contam-se por milhões de metros quadrados de construção o que seria preciso para satisfazer às exigências do Brasil.

E os recursos?

Materiais naturais para construir temo-los de toda espécie em abundância. Utilizados, estudados, aplicados, poderão dar à nossa arquitetura riqueza e diversidade.

Recursos para produzirmos os materiais industrializados, que a técnica moderna reclama, existem de sobra, todos nós sabemos.

Assim como as nossas necessidades são imensas, imensas são as nossas possibilidades. O progresso econômico do país, o desenvolvimento da indústria nacional poderão tornar correntes, baratos, materiais que hoje usamos como artigos de luxo.

Como poderia o arquiteto brasileiro sentir-se indiferente ante tal fato? Como poderia não desejar ardentemente e cooperar ao desenvolvimento de nossa economia, de nossa organização social?

Mas uma arquitetura brasileira não será somente de materiais de construção tirados do nosso solo ou produzidos em nossas fábricas. Ela também tirará do povo, de suas tradições, de seu poder criador, os elementos de sua beleza e de sua expressão.

E o arquiteto que ama o seu povo, que se orgulha de pertencer a ele, quanta inspiração, quantos ensinamentos irá encontrar nas manifestações da criação popular e na tradição cultural do país. O que pode fazer um gaúcho da fronteira com o único material que dispõe: o couro cru; e o único instrumento: a faca? São, às vezes, obras artísticas, cheias de beleza. O que não poderão fazer essas milhões de mãos brasileiras quando tiverem à sua disposição meios de produzir.

É da mobilização desses imensos recursos brasileiros, materiais e humanos, que depende o futuro de nossa cultura nacional e a arquitetura brasileira.

Vemos, assim, que a nossa arte não poderá ter uma trajetória independente de outros aspectos da vida nacional. A existência e a grandeza de uma arquitetura contemporânea brasileira não depende de artigos em revistas estrangeiras, é uma questão de progresso nacional.

Se lançarmos as nossas vistas sobre o momento histórico atual, veremos logo que todos os motivos de divisões entre brasileiros desaparecem diante de interesses comuns e dos perigos que a ameaçam.
Arquitetos, engenheiros, médicos, professores, artistas, podemos todos fazer nossas as palavras do chefe da Igreja Católica: “Com a paz, tudo ainda pode ser salvo; com a guerra, tudo estará certamente perdido”.

Tudo estará perdido, com efeito, se os recursos que podiam servir para habitações, escolas, bibliotecas, foram destinados a importar engenhos de guerra. Tudo estará perdido se os recursos que se destinariam a bolsas de estudos, formação e aperfeiçoamento de profissionais brasileiros forem destinados à sustentação dos técnicos que acompanham esses armamentos.

O progresso construído, ao contrário, dentro do convívio pacífico dos povos, nos oferece infinitas possibilidades de produzir, de trabalhar aos nossos semelhantes.

Meus jovens colegas:

Nesta solenidade, que não é uma despedida, e sim, uma festa de honra de vocês, coube-me a distinção, que mais uma vez agradeço, de dirigir-lhes a minha saudação.

Apresento a todos vocês as minhas mais vivas congratulações e meus votos de felicidades e de êxito em seus empreendimentos.

Como colega mais velho, quero fazer-lhes uma última recomendação: não se deixem, em nenhuma circunstância, isolar pelas dificuldades. Quando um de vocês vier a sentir-se preocupado pelos problemas que tiver que resolver, lembre-se que não está só, que outros colegas, muitos outros, têm preocupações semelhantes, e não se esqueça da força que temos quando nos unimos.
 

IAB - RS

Por: Diretoria Instituto de Arquitetos do Brasil - IAB

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