Para entendermos como chegamos a este ponto, precisamos voltar um pouco no tempo. Lá em 2010, quando a gestão de Fogaça-Fortunati assinou a Matriz de Responsabilidade com o Governo Federal assegurando os recursos de R$ 887,9 milhões para a capital gaúcha destinados às obras de mobilidade urbana. Três meses antes da assinatura do documento, no dia 26 de outubro de 2009, a Prefeitura Municipal de Porto Alegre (PMPA) firma parceria com o setor privado através de um Termo de Cooperação Técnica com o Centro das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (CIERGS).
Segundo o Termo de Cooperação, foi a iniciativa privada quem procurou a PMPA para se oferecer como parceira “no sentido de agilizar a realização dos projetos considerados prioritários e necessários em termos de sistema viário e mobilidade urbana do Município” (PORTO ALEGRE, 2009). Segundo reportagem do Correio do Povo, cabe à prefeitura planejar e identificar as obras necessárias para a copa, e ao CIERGS doar os projetos básicos e executivos. O “convênio viabilizará a realização das licitações de cada obra, facilitando a implementação dos projetos, com economia para as finanças municipais, já que a prefeitura não investirá recursos nessa etapa. Segundo o então secretário extraordinário da Copa, José Fortunati, o convênio proporcionará maior agilidade” (PARCERIA…, 2009, grifo meu).
O Termo, em princípio, propicionou a ausência de necessidade de licitação – de fato, se evitou uma etapa do processo legal da administração pública, além da economia de tempo, representou na época, uma economia de recursos ao município, que por tal razão pode optar por mais obras. No entanto, esta suposta agilidade foi perdendo espaço. Conforme o documento firmado, o CIERGS deveria entregar os projetos básicos e executivos dos projetos, porém em termo aditivo do Termo de Cooperação ficou “alterada a redação no seguinte contexto: onde se lê projeto(s) básico(s) e executivo (s), leia-se projeto(s) básico (s)” (PORTO ALEGRE, 2011).
Percebeu-se no decorrer do processo que o convênio não se mostrou eficiente, e também de quem foi realmente a escolha dos projetos, pois os projetos entregues pelo CIERGS dizem respeito apenas às obras de mobilidade urbana que priorizam o automóvel. Nenhum dos projetos do sistema BRT foi entregue. As obras que foram executadas dizem respeito apenas à pavimentação e tiveram seus projetos elaborados pela equipe de técnicos da PMPA.
O Tribunal de Contas do Estado (TCE) apresentou um documento sobre os andamentos das obras da Matriz de Responsabilidade, que acompanhou até julho de 2013. Segundo o jornal Zero Hora, o documento aponta que “‘o atraso generalizado dos projetos e das obras evidencia falhas de planejamento e organização’ e registra que o descumprimento de cronogramas favorece o aumento de custos por meio de ‘reajustes de contratos que se perpetuam além dos prazos previstos e em razão do incremento de serviços’” (MOREIRA, 2013). O TCE aponta, também, “sobrepreço em dois serviços executados pelos consórcios que venceram a licitação – fresagem e sinalização” (IMPASSE…, 2013). Os itens estariam 100% e 30% acima do preço de mercado, respectivamente. O impasse entre PMPA e TCE paralisou as obras nos corredores de ônibus.
O projeto rodoviarista de Porto Alegre fica evidente ao se comparar a Matriz de Responsabilidade de todas as cidades sede para a Copa do Mundo 2014: Porto Alegre é a capital que mais investiu em transporte individual (automóvel), quando a lógica na maioria das cidades é a de investimento em infraestrutura para o transporte coletivo, conforme os graficos abaixo.
Para entender melhor o que é um BRT recorre-se ao manual elaborado pelo Ministérios das Cidades (BRASIL, 2008, p. 1), no qual o BRT “é um sistema de transporte de ônibus que proporciona mobilidade urbana rápida, confortável e com custo eficiente através da provisão de infraestrutura segregada com prioridade de passagem, operação rápida e frequente e excelência em marketing e serviço ao usuário”. O sistema “imita as características de desempenho e conforto dos modernos sistemas de transporte sobre trilhos, mas com uma fração de custo”. A maior velocidade e conforto do BRT seriam possíveis graças a uma combinação de fatores, como (1) a utilização de via única para o ônibus, preferencialmente com espaço para ultrapassagem; (2) uma rede de estações altas de embarque e desembarque, que viabilizam a utilização de um tipo de veículo com motor de rápida propulsão; (3) veículo biarticulado, com maior capacidade de passageiros; (4) estações fechadas e alinhadas com o nível do ônibus, com bilhetagem eletrônica dentro da estação e múltiplas portas para entrada e saída do veiculo; e, por fim, (5) um sistema fechado, similar a um metrô, ou seja, o ônibus nunca sai do corredor. Esta é a situação ideal de um sistema de BRT, mas que podem ter variações para se adequar a cada caso.
Em Porto Alegre, a implementação do sistema aconteceria pela substituição dos corredores de ônibus da Av. João Pessoa, Av. Bento Gonçalves e Av. Protásio Alves, sem trechos para ultrapassagem. Em Porto Alegre, muitas linhas de ônibus saem do corredor para circular no interior dos bairros. Por conta deste fato, o sistema BRT que seria implantado em Porto Alegre era o de estação baixa, o que diminui a potência de arranque do BRT por se tratar de modelo de ônibus com motor baixo, de sistema aberto. O escritório MetrôPoA e a Metroplan trabalhavam, entretanto, numa otimização das linhas para que muitos ônibus não circulassem até o centro, contribuindo para uma melhor eficiência do sistema. Porém, é necessário observar que, como a cidade já contava com a bilhetagem eletrônica e um sistema de corredores de ônibus, esta otimização poderia ter sido feita independentemente da implantação do sistema BRT. A PMPA ainda buscava na época uma solução para a questão dos ônibus da região metropolitana que vão até o centro da capital por causa da cobrança de valores da passagem diferentes. Percebe-se a dificuldade da PMPA em dialogar com a Associação das Empresas de Transporte de Passageiros de Porto Alegre (ATP), pois o problema esbarra na cobrança da tarifa das linhas de ônibus, e principamente nos interesses do setor privado das empresas de ônibus. Ou seja, a cidade não precisa de obras grandes e caras, precisa de vontade política para superar as dificuldades enfrentadas junto às empresas de ônibus que não querem perder a sua fatia no mercado.
Assim o BRT nasce para não acontecer. De um lado o setor privado representado pela CIERGS que não doa os projetos, com interesse claro de melhorar a fluidez dos automóveis e com isso aumentar as vendas no setor automobilístico, e de outro, os interesses igualmente privados das empresas de transporte coletivo na capital.
Agora a PMPA liderada por Marchezan Jr. anuncia que o dinheiro ainda disponível para a realização das obras do BRT (que até hoje não foram disponibilizados pela Caixa Econômica Federal pela falta de projeto), não será mais disponibilizado para a ideia original do BRT. É bem verdade que a ideia original não mudaria muito o sistema, e também que o novo projeto idealizado pela equipe de Marchezan prevê um BRT para a região metropolitana, uma vez que a linha do metrô nunca saiu do papel. Conforme publicado na matéria do Jornal do Comércio, no último dia 8 de agosto, este novo projeto de mobilidade urbana integrado à Região Metroplitana envolve a construção do corredor de ônibus na Av. Assis Brasil e necessita tanto quanto o antigo projeto de uma tarifa integrada. O orçameno do novo projeto está estimado em R$ 1 milhão.
Lembrando que R$ 1 bilhão a fundo perdido disponibilizado pelo Ministério das Cidades para a construção do metrô foi realmente perdido pela administração muncipal de Fortunati. Para o novo projeto, se estipula o financiamento do Ministério das Cidades, 54% dos recursos destinados ao antigo BRT (afinal a outra parte será para drenagem e tapar buracos, literalmente) e o restante pela participação do setor privado através de PPPs. Na mesma matéria do Jornal do Comércio, o secretário municipal de Planejamento e Gestão José Alfredo Parode defende que “o modelo de financiamento exclusivo com recursos públicos se esgotou” (SANDER, 2017). Lembrando que os 54% dos recursos do BRT, equivalente a R$ 134,36 milhões podem ser perdidos, por não se destinarem ao seu projeto de origem.
Fica evidente o movimento cíclico: de início o Estado dá ao setor privado a capacidade de optar que obras públicas são melhor para a cidade, mas o setor privado opta pelas obras que são melhor para os seus negócios. Esta escolha acarreta na perda de dinheiro público, que por sua vez, justifica que novamente a lógica neoliberal de delegar ao setor privado a resolução dos problemas de natureza pública seja efetivada. O resultado disso tudo, qual será? Afinal, como fica uma PPP de um corredor de ônibus? Vai ter pedágio para quem pega o BRT? Quais são as contrapartidas para que uma empresa privada tenha interesse em participar de uma construção de BRT? Importante notar que, na mesma semana, o Prefeito Marchezan Jr. assinou o decreto que retira a gratuidade da segunda passagem de ônibus e estipula que ela custe 50% da tarifa atual. Mas o BRT não prevê integração de tarifas?
Como o setor privado não entra numa PPP para ter prejuízos, possivelmente quem vai pagar a conta somos nós, os cidadãos de Porto Alegre. Lembrando que sempre que os serviços urbanos forem privatizados, os cidadãos passam a ser tratados como clientes, porém sob uma lógica na qual não se aplica o jargão de que o cliente sempre tem razão.
Os impactos disso serão diversos. Para citar alguns exemplos, (1) quanto menor a qualidade e maior o custo dos serviços de trasporte coletivo, mais pessoas optarão, mesmo que contraindo dívidas, por comprar um automóvel, ou seja, ainda mais carros nas ruas, (2) dificuldade da população que mora na periferia em conseguir emprego em áreas centrais ou longe de suas casas, (3) dificuldade do empreendedor em ter mais funcionários, pois terão que gastar mais com transporte, (4) impactos no comércio em geral, pois a prática do consumo depende da mobilidade das pessoas na cidade, (5) restrição do acesso às áreas de lazer nos finais de semana pelas famílias e estudantes. Ou seja, dificuldades de mobilidade não só urbana, mas social, que afetarão a vida de todos os porto-alegrenses.
Clarice Misoczky de Oliveira é vice-presidente do IAB.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério das Cidades. Manual do BRT Bus Rapid Transit. Guia de Planejamento. Brasília, DF, 2008. Disponível em
(http://www.sedhab.df.gov.br/mapas_sicad/conferencias/manual_de_brt.pdf), acesso em 4 set. 2013.