Ingressam os integrantes desta turma, como intelectuais organizados em profissão, no processo de elaboração da nossa cultura. É justo que ouçam, neste momento, um depoimento sobre a atuação cultural da categoria profissional a que passam a pertencer.
A atuação dos arquitetos, vista como movimento cultural específico, tem sua origem na renovação do conceito de arquitetura, ocorrida no século passado. Essa renovação de conceitos foi muito mais profunda do que uma inovação estética, ou que uma nova conceituação ética da profissão. Seu conteúdo tem raízes nos acontecimentos históricos originados nas revoluções francesa e norte-americana.
Como todas as expressões do trabalho e da cultura, a arquitetura integra um sistema social e constitui, ela mesma, um instrumento a mais de consolidação desse mesmo sistema e das relações sociais que lhe são próprias.
Templos, castelos, cidades do passado, produtos do trabalho alienado, do trabalho não pertencente ao trabalhador, todos os monumentos – os da antiguidade, os da nossa América –, as nossas igrejas coloniais e, até mesmo, na arquitetura atual, em tudo existe a contradição da força criativa do homem, posta a serviço de alguma forma de dominação.
Dominação do homem pelo homem, dominação pela imagem; pela imagem da ordem, da força, do mistério, da riqueza, dominação até pela imagem da liberdade.
À medida que, no século XIX, os sonhos milenares da fraternidade humana começaram a tomar corpo nas lutas do proletariado moderno, à medida que as utopias começaram a revelar-se possíveis à luz do progresso do conhecimento científico, germinou na mente humana a idéia de um espaço organizado por homens livres e iguais, a idéia de uma arquitetura liberta do papel opressor que lhe coubera no passado. Essa idéia continuava a de cidades perfeitas, imaginárias, que balizou, no decurso dos séculos, o planejamento dos filósofos.
Foi se formando assim o conceito da arquitetura do nosso tempo. Por vezes interpretado superficialmente como restrito à forma estética, o conceito de arquitetura nova e, na sua essência, o de uma arquitetura sem falsidade porque sem finalidade mistificadora, livre porque sem objetivo opressor.
A contradição entre as leis sociais da competição e do individualismo por um lado, e as aspirações de uma arquitetura nova por outro lado, essa contradição modelou o movimento moderno. O conceito evoluiu sob o embate das resistências da realidade.
A concepção de um espaço organizado racionalmente chocou-se com a irracionalidade do processo econômico.
A arquitetura moderna permaneceu afastada das decisões fundamentais.
No campo cultural, no entanto, sempre se manteve viva a estreita vinculação da arquitetura com as artes visuais, principalmente a pintura. As diferentes correntes artísticas que se sucederam neste século tiveram todas elas alguma influência nas concepções estéticas da arquitetura moderna.
A audácia da invenção formal compensou falsamente a estreiteza das possibilidades de ação. E isso tanto mais que, afastada de compromissos práticos, a arquitetura gozava de uma maior liberdade formal.
Nos últimos decênios, porém, foi dada aos arquitetos de muitos países a oportunidade de resolver problemas de cunho social e de enfrentar, assim, a crítica popular que até então lhes fora desconhecida.
Não mais se confunde com uma corrente estética, e define-se plenamente como uma perspectiva histórica da organização espacial, com base na produção em massa de habitações e equipamentos na reconciliação com a natureza.
No Brasil, o movimento moderno em arquitetura acompanhou desde cedo a evolução das tendências européias. Desde o fim da primeira guerra mundial, como parte de um processo geral de questionamento de valores da sociedade brasileira, definiu-se um movimento de crítica cultural que continha, no seu bojo, os germes de uma atitude moderna, relativamente à arquitetura.
Logo após a segunda guerra, o nosso país viveu um período de grande otimismo político e cultural. Ampliaram-se então os horizontes da arquitetura. Foram fundados cursos de arquitetura em vários pontos do país, inclusive no Rio Grande do Sul, graças à visão e à coragem de homens da estatura de Tasso Corrêa.
Organizados no Instituto de Arquitetos, e agora em sindicatos, têm agido constantemente em defesa de uma arquitetura digna do nosso tempo e do nosso país. Essa ação nada tem a ver com a defesa de uma corrente estética, é a colocação da perspectiva histórica da arquitetura diante da realidade brasileira.
Essência dessa realidade reside nos desequilíbrios gerados pela dependência externa e pelo atraso político, especialmente ao nível do poder.
Em primeiro lugar estão os desequilíbrios econômicos, a desigualdade e a concentração da renda, em conseqüência das quais grande parte da população, mesmo urbana, não tem experiência vivencial de qualquer forma de arquitetura.
No plano cultural, a subordinação econômica externa gera o colonialismo cultural, a preferência e a imitação sistemática do que provém dos países centrais, a comercialização da vida artística e a deseducação do povo pelos meios de comunicação, a serviço incondicional do lucro.
Uma arquitetura honesta para homens livres é, em países como o nosso, uma perspectiva de conquistas futuras. Hoje, só pode existir ocasional e fragmentariamente. Todos nós sabemos disso.
Não se trata de promoção do trabalho profissional simplesmente, e sim da participação dos nossos conhecimentos próprios na solução de problemas práticos de toda a sociedade: a habitação, a cidade, as suas relações com a natureza.
Não se opõe ao trabalho profissional, mas, pelo contrário, recebe a sua substância da experiência haurida na atividade pessoal de cada um.
Junto com os profissionais de outras áreas, com os homens de ensino, com os cientistas e com os artistas, somos levados a ver o processo cultural brasileiro como algo indivisível, inseparável, por sua vez, do processo histórico de desenvolvimento social e político do país.
Não estamos fora da história. Vivemos numa época determinada, com problemas determinados.
Nossa atitude cultural seria hipócrita, ou covarde, se ignorasse os rumos da sociedade.
Somos parte de uma realidade histórica e não é por acaso que os Estatutos Sociais do Instituto de Arquitetos contenham o compromisso de zelarmos pelo respeito e pela dignidade dos direitos da pessoa humana.
É a consciência da realidade nacional que fez com que o IX Congresso Brasileiro de Arquitetos, reunido na cidade de São Paulo em outubro passado, proclamasse a sua posição contrária aos dispositivos de exceção vigentes.
Há uma solidariedade profunda e indestrutível entre todos os que defendem os direitos do pensamento: profissionais, cientistas, professores e estudantes.
Essa solidariedade conquistará o caminho do diálogo e triunfará da intolerância.