Artigo: “A Cidade Zumbi: especulação e corrupção contra o espaço público e a moradia”

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O texto foi escrito pelo arquiteto e urbanista Tiago Holzmann da Silva e publicado no jornal Matinal, no dia 10 de janeiro de 2025.

Zumbis, na tradição popular, são mortos-vivos – corpos que perderam sua alma e, embora aparentemente revividos, existem apenas como cascas vazias. A origem da palavra remonta ao termo africano nzumbe, que significa “aquele que estava morto e reviveu”, uma ideia presente em crenças como o vodu haitiano, onde feiticeiros supostamente transformam pessoas em zumbis por meio de venenos e rituais.

No contexto urbano contemporâneo, essa metáfora ganha outra forma, refletindo a vida artificial – não vida – de edifícios e espaços urbanos que, embora fisicamente presentes, carecem de uma alma que os conecte ao seu propósito original. Edifícios, ruas e praças tornam-se estruturas vazias, cujas funções sociais são sobrepostas pela lógica da especulação e da acumulação, criando um ambiente desumanizado. À medida que edifícios e espaços públicos perdem sua conexão com a função social para a qual foram criados, a cidade também se transforma em um “morto-vivo”, em uma “cidade zumbi” aprofundando injustiças e privilegiando os mesmos interesses privados.

A ausência de propósito desses espaços e edificações não se limita à sua inatividade funcional, mas também amplifica a contradição entre o espaço urbano disponível e a grave crise de acesso à moradia que afeta milhões de brasileiros. O déficit habitacional no Brasil, que representa a necessidade de novas unidades, atingiu 5,87 milhões de domicílios, correspondendo a 19,9% da população. Este déficit é composto principalmente por famílias com ônus excessivo com aluguel (3,03 milhões), situações de coabitação (1,36 milhões) e habitações precárias (1,48 milhões). No Rio Grande do Sul, os números são proporcionalmente menores, totalizando 220,9 mil domicílios (10,1%), sendo 121,5 mil famílias com alto comprometimento de renda com aluguel, 34 mil em coabitação e 65,2 mil vivendo em condições de moradia precária.

Além do déficit quantitativo, há o problema da inadequação habitacional, que demanda melhorias nas moradias existentes. No Brasil, 24,89 milhões de domicílios são considerados inadequados (80,1%), devido à carência de infraestrutura básica (14,25 milhões), condições edilícias inadequadas (11,24 milhões) e insegurança fundiária urbana (3,55 milhões). No Rio Grande do Sul, 2,02 milhões de domicílios são inadequados (89,9%), o que corresponde a 56% dos domicílios do estado.

Os dados evidenciam a necessidade de estratégias diferenciadas para enfrentamento do problema da moradia, pois “apenas” 20% do déficit habitacional no Brasil requer a construção de novas unidades (como as previstas pelo programa Minha Casa Minha Vida), enquanto os outros 80% demandam políticas voltadas para a qualificação das moradias já existentes, sem a necessidade de construção de novas unidades e relocação de famílias. No Rio Grande do Sul, a proporção é ainda mais acentuada, com 90% das demandas relacionadas à inadequação habitacional, que carecem de políticas públicas continuadas e consistentes.

Entretanto, apesar do déficit (quantitativo) e das inadequações (qualitativas), os dados sugerem uma contradição relevante: o crescimento do número de domicílios vazios ou subutilizados. Conforme dados do IBGE (2022), entre 2010 e 2022, no Rio Grande do Sul, o número de domicílios vagos cresceu 85,2%, alcançando 101.013 unidades, além de outras 27.250 destinadas a uso ocasional. Isso significa que 20% das moradias na região metropolitana permanecem desocupadas, mesmo com a existência de um déficit habitacional significativo e uma demanda expressiva por moradias sociais. Essa discrepância aponta para a necessidade de revisar as políticas públicas voltadas à habitação. Em vez de focar exclusivamente na construção de novas unidades, devem ser articuladas medidas que incentivem a ocupação de imóveis ociosos, como programas de locação social, reabilitação de áreas urbanas degradadas e programas de melhorias habitacionais. Tais estratégias ajudariam não apenas a reduzir o déficit quantitativo, mas também a revitalizar bairros e otimizar a infraestrutura urbana existente, principalmente nas áreas centrais.

Portanto, a análise da habitação no Brasil e no Rio Grande do Sul evidencia a complexidade do problema, que vai além da simples carência de moradias. Enfrentar o déficit e a inadequação requer a integração de políticas de produção habitacional com iniciativas que promovam o aproveitamento do estoque já existente, garantindo o acesso à moradia digna de forma eficiente e sustentável.

Uma ferramenta importante para enfrentar o déficit e a inadequação habitacional é a Lei de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (ATHIS), Lei nº 11.888/2008. Essa legislação regulamenta o artigo 6º da Constituição Federal, que consagra a moradia como um direito social. A ATHIS garante às famílias de baixa renda o acesso à assistência técnica pública e gratuita para projetos de reformas e construção de habitações de interesse social, com o objetivo de promover soluções de moradia dignas e acessíveis. A lei tem como público-alvo famílias com renda de até três salários mínimos, contemplando aquelas que enfrentam maior vulnerabilidade, como precariedade estrutural da casa, insegurança fundiária e carência de infraestrutura. A assistência técnica prevista pela ATHIS abrange desde o planejamento e desenvolvimento de projetos até a execução de reformas, ampliações e melhorias habitacionais, sempre sob a responsabilidade de profissionais arquitetos e urbanistas.

Embora a ATHIS represente um avanço significativo na garantia do direito à moradia, sua implementação enfrenta desafios, como a falta de conhecimento sobre a lei por parte da população e limitações no financiamento e estruturação dos serviços nos municípios. Ampliar a aplicação da ATHIS, aliada a políticas que incentivem a ocupação de imóveis vagos, pode ser uma estratégia integrada para reduzir, principalmente, o déficit qualitativo, enfrentando as inadequações habitacionais e reduzindo a necessidade de novas construções.

Por outro lado, o setor da construção civil, historicamente associado à produção de habitação e espaços de trabalho, se apresenta agora como mercado imobiliário transformando boa parte da construção civil em um novo ativo financeiro, comparável ao dólar ou ao ouro, no contexto do mercado globalizado. Essa dinâmica reflete a transformação do espaço de valor de uso para valor de troca, conforme conceituado por Henri Lefebvre. O valor de uso do espaço, relacionado às suas funções sociais, como morar e trabalhar, cede lugar ao valor de troca, no qual o espaço urbano é tratado como mercadoria especulativa. Nesse cenário, o metro quadrado deixa de ser apenas uma medida de terra habitável ou comercial para se tornar um produto de alto valor financeiro. O setor imobiliário passa a “construir o ouro que vende”, priorizando imóveis para investimento e especulação e não para uso efetivo da população.

A especulação imobiliária aprofunda essa lógica, contribuindo para o fenômeno dos “edifícios mortos-vivos”, grandes estruturas urbanas que permanecem semivazias enquanto aguardam valorização no mercado. Esses imóveis funcionam como reserva de valor para investidores, desconectando-se de sua função social e reforçando a desigualdade e encarecendo o acesso à moradia. Como apresentado anteriormente, dados recentes indicam que o número de imóveis vazios no Brasil cresceu significativamente, confirmando que o investidor do mercado imobiliário tem interesse apenas no resultado financeiro para sua atividade. Essa dinâmica agrava as desigualdades urbanas, ao excluir populações vulneráveis de áreas centrais urbanizadas e com bom acesso a serviços públicos, aumentando o custo de vida e consolidando uma lógica que prioriza o capital financeiro sobre os direitos sociais. Enquanto milhões de pessoas enfrentam dificuldades para acessar uma moradia digna, imóveis subutilizados permanecem como símbolos de uma economia urbana voltada para a acumulação de capital.

Além disso, o fenômeno da “corrupção urbanística” distorce os processos de planejamento e gestão do espaço urbano, direcionando-os para atender a interesses privados, muitas vezes relacionados à especulação imobiliária. Essa prática ocorre quando prefeitos, gestores públicos e vereadores, frequentemente financiados por grandes grupos econômicos ou incorporadoras, modificam legislações e normativas locais para “legalizar” irregularidades evidentes. Embora essas alterações aparentem legalidade, elas contrariam diretrizes federais, como o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), fragilizam ainda mais a legislação ambiental e desconsideram a função social da propriedade. Por covardia ou conivência, essas distorções enfrentam pouca resistência por parte dos órgãos de controle, como o Ministério Público e outras instâncias do poder judiciário.

As modificações nos Planos Diretores e zoneamentos urbanísticos, permitindo construções em áreas ambientalmente protegidas, a aprovação de empreendimentos que desrespeitam os regimes urbanísticos e a flexibilização das normas de uso e ocupação ilustram bem a corrupção urbanística. Essas práticas transformam o espaço urbano em um bem acessível apenas aos mais poderosos, em detrimento do interesse coletivo e da preservação ambiental.

O mercado imobiliário também é um dos setores preferidos para a prática de lavagem de dinheiro, devido à facilidade de ocultação de recursos ilícitos em bens de alto valor. Cidades como Balneário Camboriú, em Santa Catarina, tornaram-se ícones desse fenômeno, atraindo recursos de origem duvidosa por meio da construção de empreendimentos de luxo. Os arranha-céus da cidade, entre os mais altos do mundo, ilustram como imóveis são usados para converter dinheiro sujo em ativos aparentemente legítimos.

A prática envolve a aquisição de propriedades com recursos não declarados, a posterior revenda ou aluguel desses imóveis, e o retorno dos valores ao sistema financeiro como “lucro”. Em Balneário Camboriú, além do alto volume de imóveis vazios, existe uma concentração de empreendimentos de altíssimo padrão que não correspondem à demanda demográfica da região, mas sim à lógica de valorização e ocultação de capital.

Outros exemplos incluem a ocupação irregular de áreas nobres ou turísticas no Brasil e no exterior, com a construção de empreendimentos que servem para inflacionar artificialmente o mercado imobiliário. Essas práticas, embora localizadas, têm impactos nacionais, gerando bolhas econômicas e agravando a exclusão habitacional.

Para o setor imobiliário especulativo e os gestores públicos a seu serviço, o patrimônio ambiental ou cultural, por sua natureza inapropriável, são vistos como um obstáculo ao avanço do capital. Áreas verdes, prédios históricos e bens culturais, que pertencem a todos e simbolizam a identidade e a memória coletiva, são constantemente ameaçados por projetos que os descartam ou destroem em nome da “modernização”, da “valorização urbana” ou a falácia da “geração de empregos”. Novamente, esse desprezo reflete o conflito entre o valor de uso do patrimônio, relacionado à preservação da cultura, história e da memória coletiva, e o valor de troca, que enxerga o patrimônio apenas como um ativo financeiro a ser transformado e mercantilizado.

A cidade zumbi é, antes de tudo, o reflexo dessa urbanização movida por forças que desconsideram as necessidades humanas em prol de interesses financeiros. É a cidade onde o mercado financeiro, com seus maus humores, erige edifícios vazios, “mortos-vivos” que não servem à função social da habitação ou do trabalho, mas apenas à acumulação de riquezas. Essa cidade perpetua um ciclo de destruição, onde a corrupção urbanística e a lavagem de dinheiro moldam um espaço urbano desprovido de sentido e vida. Sua lógica é de ocupação especulativa, onde se tornam invisíveis as necessidades da população e, no lugar disso, florescem os interesses privados, alimentados por políticas “públicas” que favorecem a privatização e a exclusão social.

A cidade zumbi não é apenas uma metáfora para os edifícios abandonados, mas para um urbanismo que, em seu cerne, se nutre de práticas ilegais e imorais. São cidades onde o patrimônio natural, cultural e arquitetônico é sistematicamente atacado, porque, para o capital, ele é apenas um obstáculo. Cada rua, cada bairro, cada praça devastada é mais uma área morta da qual o capital se apropria, consome e transforma em algo que serve apenas à lógica financeira. A destruição do patrimônio e a descaracterização dos espaços urbanos são os sintomas de uma cidade que, embora pareça viva e recém construída, na verdade, está morrendo, engolida pela força implacável do mercado.

A cidade zumbi só poderá ser derrotada pela ação dos vivos, daqueles que resistem a essa lógica perversa de especulação e destruição. Somente uma cidade construída sobre princípios de justiça social, preservação cultural e respeito ao meio ambiente poderá devolver a vida ao espaço urbano. A cidade zumbi, com sua torpeza e falta de alma, só se transformará quando a ação coletiva resgatar o espaço urbano de suas garras, fazendo-o novamente viver para as pessoas e para o conjunto da sociedade.

 

Acesse aqui a publicação original. 

IAB - RS

Por: Diretoria Instituto de Arquitetos do Brasil - IAB

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