Em 21 de junho de 2004, o velho caudilho foi embora sem aviso prévio, tendo cumprido à risca sua missão histórica. Foi habitar outras plagas, para quem acredita nas outras dimensões da matéria. Deixou um bilhete pra todos, ensinando como livrar-se da saudade: multiplicando as armas vivas do velho guerreiro.
Em 15 de dezembro de 2004, Niemeyer, velho timoneiro, cumprirá 97 anos, a caminho, oxalá! da ruptura da marca centenária. São duas lições de vida, duas trajetórias que se unem na coragem, na coerência, na simpatia, na sedução, e simplicidade de enfrentar a vida. Brizola, quando ainda jovem, Prefeito de Porto Alegre, governador do Rio Grande do Sul, marcava sua presença pela fala mansa, cadenciada, nascida, por certo, das longas horas de conversa à beira do fogo. Embrião seguro daquela imagem paternal de conselheiro que a acumulação dos anos se encarregaria de sedimentar. Conheci-o, pessoalmente, no Palácio Piratini, Palácio do Governo, em companhia de Irineu Breitman, então, presidente do IAB – RS (1960-1962). Eu era vice de Irineu. Audiência simpática e descontraída, propícia aos ouvidos do jovem Governador, para levar-lhe uma visão dos programas de trabalho do IAB. Lembro-me muito bem, e como, que essa audiência mereceu uma coleção de fotos pelo fotógrafo oficial do palácio. Impossível imaginar-se que esse evento precederia, por curto espaço de tempo, o desenrolar dos acontecimentos políticos que abalaram o país, em função do escândalo da renuncia de Jânio Quadros – 25 de agosto de 1961. Impossível imaginar-se que, poucos anos depois, eu teria de esconder essas fotos no forro falso de meu escritório, em Porto Alegre, em conseqüência do famigerado golpe militar de 1964. As fotos desapareceram, porém, a vivência dessa curta história (1961-1964) criou raízes na alma da gente, e, de todos aqueles que encarnaram a empolgação cívica, no quotidiano da crise política de 1961, com a renúncia de Jânio. Jango Goulart era seu vice, e visitava, então a China. Os militares opuseram-se à posse do vice-presidente. E aí tudo começou. O movimento de resistência ao golpe militar tomou corpo logo, sob a liderança de Leonel Brizola, com o apoio do general Machado Lopes, comandante do III exército, a maior força militar do país. Formava-se, assim, a rede nacional da legalidade (pela posse de Jango), uma grande cadeia de rádios, sedimentando a mobilização, o fluxo das notícias, e, veiculando para o Brasil e para o mundo a voz cadenciada, segura e sedutora do velho caudilho. Todos os principais documentos lidos nessa cadeia de rádios eram vertidos para o alemão, árabe, inglês, francês, espanhol e italiano. A presença de Brizola ganhava liderança e dimensão nacional. Nessa época, 1961, as comunicações eram difíceis e complicadas, daí, o uso de rádios amadoras, dentre elas, a do pai do Carlos Maximiliano Fayet, que nos colocava em contato com os outros departamentos do IAB. É que o IAB RS havia se constituído em Comitê de Resistência Democrática, como tantos outros grupos profissionais, intelectuais e populares. Dentre eles, o Teatro de Equipe, à Rua General Vitorino (onde eu morava, em Porto Alegre), fundado em 1957, por Mário de Almeida (diretor), Milton Mattos, Paulo César Pereio, Paulo José, Ruy Carlos Ostermann e Glênio Peres. O teatro era uma pequena casa, reformada pelo arquiteto Irineu Breitman. Ao dobrar da esquina ficava a sede do IAB RS. Bons vizinhos e com muitos vínculos, esses dois centros culturais irmanam-se na campanha pela legalidade, ampla, geral e irrestrita. O teatro, sempre de portas abertas, tornou-se o ponto de encontro, em assembléia permanente, onde acalentávamos a curiosidade e os temores de uma provável guerra civil. Lembro-me que, em assembléia geral do IAB RS, redigimos um manifesto à nação e aos arquitetos brasileiros, conclamando a resistência. Esse manifesto foi lido na rede da legalidade, para orgulho nosso. O ritual para-revolucionário cumpria sua cadência quotidiana: todos os dias, uma multidão, em vigília, reuniam-se na praça da matriz (praça cívica, centro de Porto Alegre, onde ficavam a Igreja da Matriz, Palácio Piratini, Assembléia Legislativa, e, Teatro São Pedro). Alguns grupos, vindos de outras cidades, resolveram acampar. Todo o início de noite, o Governador chegava à sacada do Palácio para saudar a população. O golpe militar, afinal, foi abortado. Jango assumiu a presidência da república, limitado, é verdade, por um “inventado” regime parlamentarista, nos bastidores das armadilhas políticas. Jango tomou posse, sim, mas o país não retomou a calma necessária. O regime presidencialista voltaria logo depois, devolvendo o poder a Goulart. As reformas de base chegaram às ruas e aos comícios, dentre elas, a reforma agrária, e, a reforma urbana, da qual o IAB participava. Tudo se fez, então, para que o “fantasma” comunista rondasse a alma da “família” cristã brasileira, numa orquestração regida pela CIA, como todos, hoje, sabem.
O golpe de 1961, afinal, consumou-se, em 1º de abril de 1964.
O Brasil perdia, assim, o rumo da história, numa longa caminhada para dentro da noite. Passados quarenta anos, sabe-se muito bem das superlativas perdas, causadas, por esse período negro, à história da nação.
Foi nesse cenário, construído em duas longas e penosas décadas, que Brizola e Niemeyer encontraram-se, o político e o arquiteto, a política e a arquitetura. Niemeyer conta que foi “um contato que começou 50 anos atrás, quando, Governador do Rio Grande do Sul, veio ao Rio me procurar para um projeto que pretendia realizar naquele Estado… um ar fraternal e a fala fluente e entusiasmada que sempre o caracterizou… infelizmente o projeto ficou no papel”. (Folha de São Paulo, 23.06.2004). Brizola foi sempre um grande empreendedor e entusiasta obsessivo pelo tema da educação. No Rio Grande, criou mais de 6 mil escolas públicas, um fato que ainda hoje faz desse Estado um dos maiores no índice de alfabetização.
Quando já Governador do Estado do Rio de Janeiro, 1982, Brizola convoca o velho Oscar uma outra vez, desta feita, como Oscar afirma: “Ele queria construir os CIEPS (Centros Integrados de Educação Pública) e o Sambódromo…” Desta vez os projetos deram certo, como arquitetura e como programa. Mais de 500 CIEPS foram construídos, principalmente, junto às favelas; 80% deles para funcionar em tempo integral, em busca de um outro Brasil. Essa visão de mundo embalava as palavras de Oscar: “… A garotada dos morros neles entrava com orgulho, como se começassem a usufruir daquilo que antes só às crianças ricas era oferecido!” (Folha de São Paulo, 23.06.2004). Porém, a “sabedoria” dos sucessores de Brizola no Rio, permitiu o desabafo mais do que justificado do arquiteto: “… muitas escolas estão abandonadas, foram esculhambadas!”
Como um aprendiz abnegado, fico meditando e observando o brilho dessas duas estrelas da vida brasileira. Um diálogo, assim, entre política e arquitetura, poderia ser mais eficaz e os nossos protestos poderiam dar mais certo. Os arquitetos e suas respectivas entidades poderiam ser mais zelosos e responsáveis na elaboração das políticas públicas. Não dá para acreditar que alguém tenha medo de política, de ideologia, de vida partidária. Porque elas fazem bem à saúde do cérebro e da auto-estima. Arquitetura e política constituem um binômio perfeito, biunívoco, que mereceria ser permanente, como esse namoro eterno entre a terra e a lua, nesse passeio sem fim em torno do Sol.
Quando comecei a perceber o firmamento, eram as noites estreladas e escuras, como atalaias, guardando o silêncio das grandes fazendas do sul. Eu não sabia que as estrelas eram fixas no céu e só brilhavam por brilhar. É que me impressionavam as estrelas cadentes. Eu ficava esperando sempre, com medo, de um grande estrondo, anunciando seu impacto sobre a terra. Nesse tempo, pareceu-me mesmo que uma delas havia caído na terra, recebendo o nome de batismo, Oscar Niemeyer. Ainda menino, passei a ouvir esse nome, com freqüência. É que com 13 anos eu já era militante da juventude do PCB. Assim segui o rumo do meu próprio coração, encontrei a arquitetura, a política e os partidos políticos. Uma vida atribulada, rica e compensadora. Precisamos de muitos vereadores, deputados, senadores, ministros, etc. O lobby capenga que o IAB tenta montar para a consolidação, afinal, do Colégio Brasileiro de Arquitetos (CBA), nada mais é do que esse temor inexplicável da política. Até quando?
Brizola e Niemeyer, um grande diálogo, um grande exemplo.
Não vale elogiar porque está morto, ou porque adentra o último quarter da vida. Um e outro, ambos merecem, sim, respeito e reconhecimento por suas vidas, exemplarmente vividas.
Arq. Miguel Pereira
SP_20.07.2004