O Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento do Rio Grande do Sul, vem a público manifestar sua preocupação quanto à decisão da Prefeitura Municipal de São Leopoldo em proceder ações que possibilitarão a construção da sede que abrigará o novo Centro Administrativo Municipal, a ser implantado no coração do centro histórico da cidade. Neste contexto, o IAB-RS soma-se às manifestações de outras entidades, associações, universidades e atores individuais da sociedade civil, em especial os comprometidos com o estudo, preservação e manutenção do patrimônio arquitetônico, histórico e cultural dos municípios que compõe o Estado do Rio Grande do Sul, que, através dos meios de comunicação disponíveis, expuseram seus motivos de contrariedade quanto à pertinência do projeto de edificação que esta sendo apresentado.
Às vésperas de uma audiência pública tardia, oriunda da repercussão e mobilização popular que constrangeu a Câmara de Vereadores a tomar posição e abraçar a discussão, a Prefeitura Municipal mostra-se compelida a enfrentar o debate. O reflexo prático é incerto. Roga-se para que os representantes do Governo, a partir da instauração do primeiro processo democrático acerca do tema, re-avaliem com serenidade as decisões outrora tomadas. O que já foi dito a respeito? Oriundo do meio acadêmico, todo e qualquer profissional de arquitetura, vinculado à docência, serviço público, entidade de classe, ou simplesmente integrado ao mercado (enquanto profissional liberal), não deveria desconhecer as cartas patrimoniais e tratados referentes às questões de intervenção em centros históricos.
Trabalhar com arquitetura e urbanismo é colaborar com a constante re-construção das cidades e do imaginário de seus cidadãos, e que, para reverenciar o passado, mais que tudo, é preciso querer conhecê-lo. A necessidade de homenagear a cultura e a história dos povos que contribuíram para formação da cidade de São Leopoldo residiria nas boas intenções, não fosse o esquecimento da participação lusa, negra ou indígena neste mesmo processo. Salvo melhor juízo, de que ao homenagear a colônia germânica, estaria se prestigiando as demais etnias que ajudaram a construir a cidade, a solução proposta pela municipalidade parece não denotar pesquisa, transparecer investigação ou tampouco demonstrar conhecimento ou aprofundamento teórico. A cristalização desta sucessão de equívocos aponta para a solução simplista de um pretenso estilo, falsamente qualificado de “histórico”, que deturpa a tradição, mal dialogando com elementos da sua própria composição, bem como com os de seu entorno imediato. A apropriação de uma “linguagem” inexistente se mostra ingênua, apelando ao “fachadismo” como estratégia. Em suma, Pastiche.
Bem apontado quando das manifestações de colegas arquitetos que já se posicionaram publicamente acerca da discussão, a sociedade desavisada e desinformada, há muito vem sendo deseducada pela arquitetura equivocada e o sucesso turístico de cidades como Gramado e suas inspirações inquietantemente duvidosas. Chama a atenção que a administração municipal opte por se valer de prática que replica as tentativas “marqueteiras” de captação de recursos federais através do turismo de massas, muitas vezes apoiadas pela pressão e a total falta de compromisso para com a temática do mercado imobiliário, que “vende” conceitos e “traveste” tradições, na tentativa de obter seus ganhos de maneira fácil e por vezes perversa.
Perceber que a agressão ao patrimônio não se dá apenas pelas questões históricas, culturais, estilísticas ou de compreensão tecnologia (falso enxaimel), mas também pelo porte da edificação projetada – 7 andares – e por sua implantação no terreno, é compreender que a decisão municipal põe em risco a recuperação da área central, podendo inviabilizar o possível tombamento de exemplares do conjunto histórico existente no sítio, bem como do centro histórico propriamente dito.
Existem muitas maneiras de se organizar os espaços necessários para o desenvolvimento das funções exigidas em um exemplar arquitetônico. A forma e a volumetria da edificação tem que se trabalhada e re-trabalhada, até que se atinja uma proposta desejável. A escala deve ser adequada, a edificação deve estar em harmonia com o contexto que a circunda, preservando a visibilidade e percepção dos prédios históricos do entorno. As relações com o espaço público e com a utilização deste pelos usuários, quando não ignoradas, deveriam acontecer de maneira fluída e dinâmica. No caso abordado, são concebidas e construídas de maneira arcaica, ignorando noções e conceitos contemporâneos de planejamento de espaços e equipamentos públicos, quando do entendimento das inter-relações a serem analisadas na confecção de um projeto. Enquanto objeto arquitetônico, a proposta peca ao não propor diálogo com o exterior que circunda o edifício.
O que é importante ressaltar?
O IAB-RS acredita que a discussão posta deve transcender a questão da produção de uma edificação inapropriada, de um legado nefasto a ser herdado pela comunidade. Críticas relevantes devem evitar o juízo de valor comum, não se restringindo a categorizar o objeto por bonito ou feio, azul ou vermelho, chimango ou maragato. Devemos trazer para o debate o processo de concepção por trás da materialização da idéia pronta. O referido projeto foi anunciado em no final de Dezembro, no apagar das luzes de 2009, quando os cidadãos leopoldenses desligavam-se das coisas e do mundo para desfrutar das festas de final de ano. Veio o verão, passou o tempo, passou o vento. Imagens avulsas e definitivas, órfãs de um projeto esclarecedor (que jamais viria à tona), desprovidas informações que facilitassem sua compreensão, circulavam pelos modernos meios de comunicação de massas. Antes tarde, alguns diziam que algo estava errado, outros, que era 1º de abril.
Mas como realizar um debate sem conhecer de forma profunda o projeto / objeto ao qual iremos nos referir? É possível discorrer, desta forma, que desde muito cedo não houve interesse em se debater o projeto pretendido, nem entre os técnicos do seu quadro funcional, nem com a comunidade acadêmica, tampouco com as entidades representativas dos profissionais que poderiam qualificar e enriquecer o debate. Identifica-se também, a falta de diálogo entre os operadores das políticas municipais. De um lado prega-se a transversalidade, de outro, pratica-se uma autonomia “desejável”.
Simultaneamente a discussão proposta, a Secretaria Municipal de Planejamento articula projetos que visam re-qualificar o centro histórico municipal, promovendo intervenções na Av. Independência, também conhecida como Rua Grande, “artéria” essencial da dinâmica urbana do município e espaço público ímpar de convivência, inter-relações, trocas, comércio e prestação de serviços. Esta intervenção tende a abranger suas adjacências. Da mesma forma, a Secretaria Municipal de Cultura, através de convênio com uma Universidade (Unisinos), discute uma alternativa de abordagem para re-habilitação de toda área central do município, através do projeto de intervenção urbana Revita. Além de pensar a cidade como um espaço urbano único, valorizar o patrimônio histórico existente de forma adequada, discutir a entrada / acesso principal da cidade de maneira propositiva, o projeto sugere alternativa formal e funcional bastante mais apropriada para a edificação a abrigar o centro administrativo municipal.
Quantos projetos como este poderiam ser desenvolvidos e apreciados mediante o estabelecimento de um concurso público de projetos de arquitetura, a fim de encaminhar uma solução mais adequada e qualificada do que a que se apresenta? Neste aspecto, a estratégia adotada pelos gestores municipais parece colocar São Leopoldo na “contramão” de uma tendência mundial contemporânea.
Poderia-se depreender que, em pleno século XXI, fatores como construção e condução de um processo participativo, democrático e transparente, quando do encaminhamento de projetos para licenciamento, montagem de uma licitação e publicização dos resultados, seriam opções óbvias de enfrentamento para o desafio que se apresentava, sobretudo, por que tais conceitos são familiares às administrações de esquerda, entretanto, é possível aferir exatamente o contrário.
As informações disponíveis atestam que o projeto foi elaborado por algum departamento da Secretaria de Obras – SEMOV, entretanto pouco foi divulgado em relação aos profissionais responsáveis por sua autoria. Sintomático, não existem relatos de consulta ou diálogo com secretarias diretamente envolvidas e contempladas pelo programa de necessidades pensado para o projeto arquitetônico, reforçando a idéia de que o projeto subestima “qualitativamente” a estrutura funcional a ser contemplada, organizada e distribuída na edificação.
Estamos falando de, aproximadamente, 10 milhões de reais, investidos na materialização de aproximadamente 8.000,00 m² a serem construídos. Afirmações acerca da existência apenas de um projeto básico (inexistência de projetos complementares e detalhamentos), quando da confecção da licitação para execução do projeto, permitem afirmar que uma vez sob a responsabilidade de quem vai construir, aditivos contratuais serão necessários. Conclui-se, a partir de declarações de representantes de governo, que as obras (de início já autorizado) se estendam por um período de, no mínimo, 18 meses. Dada a urgência da inauguração do empreendimento, resta o receio de um investimento mal aplicado.
Cabe lembrar que tal urgência pode prejudicar a cidade. A portaria n.187, de 9 de junho de 2010, dispõe sobre procedimentos para apuração de infrações administrativas por conduta e atividades lesivas ao patrimônio cultural edificado, atentando para a realização na vizinhança de coisa tombada, de construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade, sem prévia autorização do IPHAN. Neste aspecto, a avaliação municipal mostra-se equivocadamente afoita.
É sabido que a arquitetura de cada período deixa seu legado às cidades. Os gestores públicos, dentre todos os demais, deveriam ser exigentes e zelosos com os equipamentos públicos produzidos em suas gestões, sobretudo àqueles cuja representatividade, simbolismo e significância demandam prerrogativas de seriedade, austeridade e respeito. Um edifício público com a representatividade de um Centro Administrativo Municipal não deveria se pretender “turístico” ou “temático”. Tampouco seus idealizadores deveriam sair em defesa de que o sucesso acerca do empreendimento proposto possa ser mensurado pela aceitação popular de uma edificação que, aos olhos de munícipes e turistas forasteiros, ávidos pelo resgate da cultura alemã, “funcione” tal qual um “apfel strudel” gigante, a ser capturado por modernas lentes digitais, em tardes ensolaradas de primavera, junto aos chafarizes do largo municipal. Neste aspecto, reiteramos que a proposta defendida pela gestão municipal é descabida, afrontando a história, a cultura e o contexto onde pretende se inserir. O porte da edificação proposta é equivocado, destoa do de seu entorno, disputando a atenção visual com verdadeiros exemplares de patrimônio histórico, num claro gesto de marcar sua pretensa imponência. Como bem dito certa feita, àqueles que a posição ou situação exige ou obriga, não basta ser sério, tem que se parecer sério.
São Leopoldo, 30 de junho de 2010.
INSTITUTUTO DE ARQUITETOS DO BRASIL Departamento do Rio Grande do Sul