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Habitação em Questão

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Habitação em Questão

Diante de matéria, publicada na edição do último dia 31 de maio do jornal Zero Hora, intitulada “Porto Alegre Cidade Ocupada”, vemo-nos no compromisso de colaborar para uma leitura mais ampla do contexto que coloca comunidades inteiras a mercê de práticas condenáveis, devidamente denunciadas, como a venda de lotes irregulares no interior de recentes ocupações na cidade de Porto Alegre, supostamente praticadas por lideranças comunitárias com apoio de profissionais da área do Direito.

A ocupação informal de áreas urbanas é prática social que tem sua origem na histórica desigualdade de acesso à propriedade e à cidade e, obviamente, não é exclusividade da cidade de Porto Alegre, tampouco das ocupações citadas na matéria. Seu agravamento durante o século XX deve-se tanto à lógica mercantil do desenvolvimento urbano brasileiro, que negou durante o último século a moradia como direito. Este contexto promoveu o avanço de um mercado informal de solo e moradia urbana o qual apresenta uma lógica própria, estudada a exaustão por profissionais de diversas áreas.

Uma significativa parte das ocupações informais na história de Porto Alegre tem sua origem em loteamentos irregulares ou clandestinos promovidos por empreendedores privados e grandes proprietários de terra. Neste sentido, cabe perguntar-nos por que a matéria não procurou investigar o histórico das propriedades ocupadas, a fim de verificar eventuais irregularidades de escala maior do que as denunciadas na matéria?

Países como Holanda e Inglaterra têm legislação de direito à moradia que remontam há mais de um século. Somente depois da Constituição de 1988, e com a instituição do Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257 de 2001, o Brasil passa a contar com um marco legal que estabelece a função social da propriedade e o direito à moradia (Emenda Constitucional nº 26 de 2000).

Conforme o Estatuto da Cidade, uma propriedade urbana cumpre sua função social quando “atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas” . Ora, vazios urbanos providos de infraestrutura e serviços públicos certamente não estão cumprindo sua função social, pelo contrário, representam tanto um prejuízo às contas públicas municipais, quanto um perigo à comunidade, pois são lugares propensos à criminalidade e violência. Sua existência só parece ser justificada pela prática danosa da especulação imobiliária.

O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA) prevê, desde 1999, a instituição das Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS), também previsto no Estatuto da Cidade. As AEIS são instrumentos úteis tanto para a regularização de ocupações e loteamentos informais, quanto para a produção de novas unidades habitacionais, devendo o poder público identificar os vazios urbanos passíveis de implantação de moradias em solo urbanizado.

O Plano Diretor é lei básica da política de desenvolvimento urbano, e segundo o Estatuto da Cidade, tanto o plano plurianual, quanto as diretrizes orçamentárias e orçamento anual devem seguir suas diretrizes. Este é o tamanho que ele deveria ter no arcabouço jurídico-institucional das cidades brasileiras. A realidade, no entanto, não é bem assim, pois do poder público municipal não tem sido exigida a aplicação de vários de seus dispositivos legais, sobretudo quanto ao direito à moradia e à função social da propriedade, em flagrante negligência dos poderes constituídos na manutenção do Estado Democrático de Direito.

O PDDUA demanda ao Executivo municipal a delimitação de áreas destinadas à produção de Habitação de Interesse Social pela instituição de AEIS, “considerando o déficit anual da demanda habitacional prioritária e os imóveis subutilizados” . A última delimitação de AEIS para este fim foi no ano de 2010, e a maioria dos projetos tanto públicos quanto de cooperativas habitacionais (via Minha Casa Minha Vida Entidades) estão travados em trâmites administrativos.

A própria matéria cita dados do Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB) os quais apontam que em 2009 cerca de 20% da população habita “áreas invadidas”, e que não existem dados atualizados, evidenciando o desinteresse com que é tratada a questão. O DEMHAB, como outros setores técnicos que tratam do desenvolvimento urbano e habitação tem sofrido um desmonte de suas condições técnico-administrativas.

Outro instrumento do PDDUA negligenciado é o que prevê a demarcação das Áreas de Ocupação Urbana Prioritária, em cujos vazios devem ser aplicados o seu parcelamento, edificação e utilização compulsórios, com prioridade para a produção habitacional social. Deveria ser ainda aplicado sobre estas propriedades, o IPTU progressivo no tempo.

Diante deste quadro de inaplicabilidade das exigências legais, a população excluída das políticas públicas e do mercado formal vê na ocupação dos vazios urbanos a única saída possível, tanto para o acesso à moradia, quanto para a pressão sobre o poder público. É esta realidade que os coloca à mercê de exploradores e aproveitadores de todo tipo e tamanho.

A aprovação da Lei Municipal 11.807 de 2015, que institui 14 novas Áreas Especiais de Interesse Social (suspensa por liminar da Justiça após pedido da Prefeitura), de autoria dos vereadores Pedro Ruas e Fernanda Melchiona (PSOL) é resultado da articulação e união das 14 ocupações contempladas, e de entidades profissionais, entre as quais o Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento Rio Grande do Sul, e Amigos da Terra Brasil, com apoio de estudantes e professores universitários, entre outros atores. A mobilização apresentada durante todo o árduo processo que levou à sua aprovação é prova de que esta Lei não trouxe a desmobilização alegada em entrevista na matéria, muito pelo contrário. Foi, outrossim, uma iniciativa popular que visava responder tanto à ausência de ações públicas de promoção de habitação, quanto à ameaça cotidiana de despejo sob a qual vivem estas comunidades.

Por fim, declaramos veementemente nossa contrariedade a quaisquer práticas legais ou ilegais de exploração dos mais pobres, seja pela mercantilização da cidade, ou por aproveitadores de plantão. Não podemos, contudo, corroborar versões dos fatos que acabam por criminalizar tanto as comunidades pobres, quanto movimentos sociais, e instituições e profissionais dedicados à prática da assessoria técnica comunitária de forma séria e responsável.


 
Rafael Pavan dos Passos
Arquiteto e Urbanista – Vice-Presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB RS)
IAB - RS

Por: Diretoria Instituto de Arquitetos do Brasil - IAB

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