A ideia para a construção de um aeroporto na área de Royal Docks (Docas Reais, na tradução livre do inglês) surgiu no início dos anos 1980. Em 1981, o governo de Margaret Thatcher criou a empresa London Docklands Development Corporation (LDDC), com o intuito de criar um novo distrito financeiro para deslocar parte das atividades do City of London, o então e ainda hoje centro financeiro da capital britânica. O London City, contudo, só seria inaugurado em 26 de outubro de 1987.
Em entrevista ao Sul21, Sue Brownill conta que, entre o anúncio da intenção do governo e a conclusão das obras, houve uma grande mobilização popular contrária à construção de um aeroporto na região, uma área densamente povoada no leste de Londres, mas que havia perdido o vigor financeiro quando os navios e cargueiros que chegavam à cidade passaram a ser grandes demais para atracar ali e passaram a parar no sul da cidade. E as indústrias acabaram indo junto.
“Ficou um vazio no porto de Londres e criou-se um debate sobre o que aconteceria. Como seria revitalizado: para suprir necessidades locais ou para trazer o desenvolvimento de alto padrão para o leste de Londres?”, explica Sue.
Além de se oporem aos possíveis transtornos que o aeroporto poderia trazer ao local — o que viria a se confirmar depois da inauguração –, a reclamação do movimento contrário era de que a população não havia sido consultada sobre a construção do aeroporto, o que significava um grande projeto de desenvolvimento urbano. Outra reclamação era de que a área era marcada por habitações precárias, falta de estrutura de transportes e de oportunidades de emprego e lazer, mas que nenhuma dessas necessidades seria atendida pela construção do aeroporto.
Os moradores então criaram uma organização chamada People’s Plan Centre, para defender um projeto de planejamento popular para a revitalização das docas, buscando apoio no comércio e nos trabalhadores locais. Após grande mobilização, eles apresentaram um plano sugerindo a substituição do aeroporto por alternativas de habitações, creche, transporte, lazer, educação e saúde, argumentando que isso também significaria a criação de empregos para a população local — enquanto os do aeroporto seriam preenchidos por pessoas de fora ou seriam vagas de baixa remuneração, para serviços como limpeza — e um impulso para a economia que respeitasse as suas necessidades.
“A principal questão em jogo era sobre quem tem o direito de planejar e também sobre a frustração com os mecanismos existentes para que as pessoas pudessem participar do planejamento urbano, porque essas pessoas sentiam que isso era muito restrito, que não podiam ver avanços naquilo que gostariam de ver acontecer para aquela área. Era uma forma diferente de entender o planejamento urbano, como um projeto para atender a justiça social, que reconhecesse diferentes formas de conhecimento, de expertise e que as cidades podem se desenvolver de diferentes maneiras”, diz a professora.
Contudo, mesmo com a realização de uma série de audiências públicas para discutir a questão e, de certa forma, o plano popular tendo “ganho o debate” de ideias, o governo britânico acabou ignorando a proposta e levando adiante a construção do aeroporto, conta Sue.
Em sua apresentação no IAB, Sue destacou que, à primeira vista, o sistema de planejamento britânico parece ser altaemente aberto à participação popular, tendo uma série de audiências públicas e mecanismos para incentivar iniciativas populares. Contudo, destaca que, na prática, o que se verifica é uma participação desigual na tomada de decisões, limitações sobre o que pode ser alterado pela população e cada vez maior poder do mercado de orientar o planejamento urbano. Por outro lado, ela salientou que o planejamento popular tem como vantagem a capacidade de apresentar abordagens alternativas à do mercado, contestando as expertises e o conhecimento que baseiam seus planos, e promovendo conceitos como justiça social, não crescimento, não deslocamento de comunidades existentes.
A questão do preço da terra e da moradia, aliás, é pano de fundo de toda a discussão urbanística. Sue destaca que o debate sobre o planejamento urbano tem crescido desde os anos 1960, quando o preço da terra passou a subir e a cidade começou a se tornar “unnafordable”, isto é, passou a ser muito cara para o bolso do cidadão médio.
Ela salienta que o Reino Unido, que chegou a ter uma das políticas de moradia mais progressistas do mundo — em certo momento, 30% das famílias moravam em residências de alguma forma subsidiadas pelo governo e de propriedade pública –, passou a deixar cada vez mais na mão do mercado o desenvolvimento urbano. Segundo ela, duas coisas aconteceram para mudar esse cenário. A primeira é que o estoque público de habitações caiu porque muitos moradores desses locais exerceram o direito de compra das casas. E, em segundo lugar, o governo deixou de construir novas casas para repor esse estoque, que atuava como um balizador do mercado e ajudava a controlar grandes saltos no preço da moradia. “O governo praticamente não constroi mais nada. O que eles fazem é uma negociação com as empreiteiras para que, a cada projeto que realizem, também precisam construir um certo número de moradias com preços acessíveis”.
O resultado é que Londres se tornou uma das cidades mais caras do mundo para se morar. “O governo atualmente acredita que a construção de mais casas vai trazer os preços para baixo. É o argumento econômico da oferta e da demanda. Eles acreditam que o mercado é a solução, mas claro que isso não acontece. Via de regra, o preço da moradia só sobe”.
Discussão volta à tona
Há cerca de cinco anos, a discussão sobre a área de Royal Docks voltou à tona, conta Sue. Enquanto o aeroporto planejava estender a sua capacidade de 77 mil voos e decolagens anuais para 111 mil (para efeito de comparação, o aeroporto de Congonhas, em São Paulo, que assim como o London City também é voltado para tráfego interno de passageiros, tem mais de 200 mil pousos e decolagens anuais). Sue diz que os moradores da região, insatisfeitos com os resultados da revitalização que se seguiu à inauguração do aeroporto e frustrados com a falsa promessa de desenvolvimento da área, iniciaram a mobilização por um novo plano popular defendendo o fechamento da estrutura e a utilização do espaço de forma mista, entre moradia e comércio, aproveitando fontes de energia sustentável e incluindo até um projeto de agricultura de pequeno porte.
“É um aeroporto bem no meio de uma área residencial. Então há barulho, distúrbios, risco potencial para as pessoas. Por outro lado, o aeroporto sempre quer se expandir, o que tomaria mais terra e impediria outros tipos de planejamento de acontecerem”, diz.
Mais uma vez, porém, o desejo da iniciativa privada se sobressaiu. Diante dessas experiências, que alimentaram o debate, mas fracassaram por não conseguirem ser executadas, Sue conta que chegou à conclusão de que não basta só planejar, mas sim conquistar o acesso à terra e a formas de financiamento. “Você pode ter um plano maravilhoso, mas se não tiver a terra e não tiver o dinheiro para desenvolver, então as pessoas que possuem a terra e o dinheiro vão construir”, diz.
Para Sue, no entanto, nem tudo foram derrotas na experiência de Royal Docks. “Uma das coisas que se tira da experiência é que é muito importante ter planejamento popular, porque ele mostra que as coisas podem ser feitas de maneiras diferentes. Pode suscitar debates”.
Ao longo das últimas décadas, também começaram a surgir pelo Reino Unido outras formas inovadoras de planejamento urbano envolvendo a comunidade, mas que agora também traziam respostas do ponto de vista da propriedade das áreas e de financiamento, as chamadas Community Land Trusts (Fundos de Terras Comunitárias ou Fundos de Posse Comum, na tradução livre do inglês).
Um projeto pioneiro de revitalização por esse método ocorreu na região de Coin Street. Na década de 70, esta região estava em decadência, com pouco comércio e ofertas de serviço, com uma comunidade residencial e economia enfraquecidas. Em 1977, uma empreiteira anunciou um plano de construção para a região, mas encontrou oposição de lideranças comunitárias. Só que, em vez de apenas pressionarem o poder público para atender suas demandas, os moradores se organizaram para comprar 5,5 hectares de terra por um milhão de libras, em 1984, e lançaram um projeto popular de revitalização. Por meio da iniciativa popular, foram construídas na região de Coin Street 220 casas e espaços abertos ao público, um centro comunitário e favorecidas iniciativas que trouxeram alternativas de emprego e lazer para a população local. “Tudo passou a ser feito pela comunidade”, diz.
Questionada se esse é um exemplo de que é possível o planejamento urbano popular se impor aos interesses do mercado, Sue reconhece que é difícil e que, na maioria das vezes, o mercado irá prevalecer. Contudo, ela acredita que é possível levar adiante planos alternativos, especialmente quando se constrói consensos entre os interesses da população, do governo e do mercado. Ela explica que esse foi o caso de Coin Street, onde a comunidade tinha a terra, mas não possuía o dinheiro para financiar o redesenvolvimento da área. “A comunidade precisou trabalhar em parceria com empreiteiros e investidores privados para fazer o projeto acontecer. Mas eles tiveram que fazer concessões ao mercado ao longo do caminho”, avalia.
Sue destaca que, além das concessões ao setor privado, que detinha o poder de financiamento, a iniciativa de Coin Street tem como pontos negativos o fato de que o projeto ainda está inacabado, mesmo 30 anos depois de iniciado, e de existir uma resistência a ele por uma parcela da população local.
Contudo, a professora destaca que é possível perceber uma mudança política recente, especialmente desde a chegada do trabalhista de origem muçulmana Sadiq Khan à prefeitura de Londres, em maio de 2016. Agora, segundo ela, esses movimentos populares começam a ter mais espaço para suas reivindicações. “A questão é você continuar fazendo barulho por tempo suficiente. Quando os preços do mercado desaceleram — o mercado de casas em Londres está caindo agora, há menos investimento estrangeiro — e com a mudança de prefeito, agora há uma oportunidade de que o plano popular seja feito, porque as circunstâncias mudaram”, diz.
Questionada sobre quais lições Porto Alegre pode tirar da experiência londrina, Sue responde: “As lições são sobre ter os mecanismos que permitam que as vozes sejam ouvidas. Eu penso que as decisões não são sobre trabalhar com o estado ou contra o estado, mas é sobre ter redes e grupos trabalhando em conjunto”, diz. “A lição é que você tem que continuar argumentando, mantendo as pressões”.