Ato relembrou os 50 anos do golpe militar no Uruguai, em evento que ocorreu na sede do IAB-RS.
Relembrar o passado, mesmo que doloroso, é uma forma de manter vivo para novas gerações episódios da história de um país para que eles não mais aconteçam. Essa foi a proposta do ato “50 anos do golpe militar no Uruguai – terrorismo de estado nunca mais”, promovido pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos e realizado com apoio do Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento do Rio Grande do Sul (IAB-RS), no dia 27 de junho.
O encontro contou com a presença do historiador Daniel Augusto de Almeida Alves, do ativista de direitos humanos Jair Krischke, e da professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e filha de sobreviventes da ditadura uruguaia e sobrevivente da ditadura argentina, Florencia Cladera Oliveira. Na abertura, o público assistiu a apresentação do grupo La Brasa Lunera, que mostrou um pouco dos ritmos afro-uruguaios.
Na abertura, a co-presidente do IAB-RS, Nathalia Danezi, destacou que foi uma honra receber o evento na sede da entidade. “Tanto por sermos um Instituto que historicamente atuou na luta contra a repressão no período da ditadura militar no Brasil, e que até hoje tem em todas as suas pautas e ações a defesa pela democracia, quanto pela representatividade de que hoje, no contexto político de ataques contínuos à democracia que vivenciamos, esse seja um espaço em que possamos juntos lembrar para jamais esquecer e jamais repetir”, disse.
Daniel Augusto de Almeida Alves, que estudou em sua tese de mestrado o tema “Sindicalismo Revolucionário e Luta Armada: A Trajetória da Federação Anarquista Uruguaia, 1963-1973”, destacou que é preciso fazer uma dupla memória, não apenas sobre o golpe de estado, mas também sobre a greve geral. “É importante ressaltar que naquele período, entre os anos 1960 e 1970, o nosso continente viveu uma série de golpes de estado, e no Uruguai houve uma grande resistência de fato. Por duas semanas aconteceu uma greve geral no país”, explica.
Alves relembra que o golpe não foi um ato isolado e repentino, mas sim fruto de uma escalada de fatos. Iniciou em 27 de junho de 1973 e finalizou em 28 de fevereiro de 1985. “Muito antes, nos anos 1940, ocorreram experiências muito repressivas por parte do estado contra o movimento operário, cerceando liberdades individuais, entre outros atos”, conta. Essa repressão teria um salto qualitativo no decorrer dos anos 1960, com as novas eleições e a reforma constitucional, que concentrou de forma demasiada o poder no executivo.
Jair Krischke relembrou histórias ocorridas no período da repressão, em especial contra a imprensa. Ele citou o caso do fotógrafo Aurélio Salcedo González, na época editor de fotografia do jornal El Popular, do partido comunista. Em 1973, González escondeu diversos negativos fotográficos, mostrando ocupações grevistas, em dutos e tubulações na esperança de que o material não caísse nas mãos dos militares. “A ditadura botou a porta da redação abaixo com um tanque. Após esconder o material, ele saiu do prédio usando um macacão de pintor, todo borrado de tinta, foi até a embaixada do México e se jogou lá para dentro”, relembra. O material ficou escondido por 30 anos, e hoje se constitui como um enorme e importante acervo sobre o período.
Em uma fala emocionada, Florencia Caldeira relembrou fatos que iniciaram quando ainda não era nascida, estabelecendo uma linha do tempo familiar que conta essa parte da história. Seu pai, Luis Eduardo Cladera, professor de história, foi um dos idealizadores do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) e fundador do Partido Comunista Revolucionario (PCR). Teve duas filhas de um primeiro casamento, antes de conhecer a mãe de Florencia. “Ela se apaixonou pelo homem errado”, brincou. “Ele era contra a luta armada e como teórico acreditava na transformação da sociedade”.
Em 1968, ainda antes da ditadura, sua primeira esposa, grávida de sua segunda filha, foi presa e torturada, e liberada um pouco antes de dar à luz. Anos depois eles se separaram, e em maio de 1973, pouco depois de uma visita às filhas, a polícia invadiu a casa. “Se ele estivesse lá eu não estaria aqui”, pontua. Um pouco antes de fugir para a Argentina exilado ele conheceu a minha mãe, que era professora de francês, e começaram a namorar. Logo depois o golpe foi instituído. “Em 1975 minha mãe engravidou de gêmeas, uma delas sou eu. Houveram novas prisões, a ex-mulher do meu pai foi presa novamente com o intuito de contar onde ele e minha mãe estavas. Ela sabia do seu paradeiro, resistiu a tudo que passou, mas nunca disse nada”, conta.
Pouco depois ocorreu um golpe na Argentina. Por fim, a família se exilou na França, onde Florencia cresceu sem sofrer o impacto da ditadura. “Tive uma infância feliz. Mas quando a gente é filho de exilado a gente cresce sem conhecer as origens da própria família, como os próprios avós. Eu nem sabia o que isso significava”, ressalta. A ausência do sentimento de pertencer à uma pátria durou até o retorno do exílio após o final da ditadura, e a família iniciou o processo de readaptação.
“É como se fosse um outro exílio. Hoje eu entendo que as coisas que a gente vive na infância, de uma forma ou outra, marcam a gente. E também entendi que o tempo não cura cicatrizes, a gente convive com elas. Por fim, entendi que, no Brasil, os militares tiveram uma grande capacidade de varrer tudo para debaixo do tapete e borrar da memória dos brasileiros a própria história. Precisamos manter a memória viva”, finaliza.
Por Ricardo Rodrigues – Ortácio Agência de Comunicação / Assessoria do IAB RS